No jornal Valor Econômico de hoje:
Receita para um mau prefeito
Artigo Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo
Quase não vejo discussão sobre as eleições deste ano. Fala-se, sim, em coligações, mesmo as mais absurdas, e no tempo de televisão que gerarão para os candidatos – mas do que importa, que é o mérito dos nomes propostos, quase nada. Permito-me assim dar uma sugestão para o eleitor decidir, não em quem vai votar, mas em quem não votar. Pelo menos, deste modo ele pode descartar nomes que não merecem cargo tão destacado. Considero prefeito o cargo mais importante do Brasil, depois de presidente da República. Embora os governadores estejam hierarquicamente acima dos prefeitos, é o município que lida com quase tudo de nossa vida cotidiana. Trânsito, saúde, educação, árvores, calor e frio, até o bem-estar físico e mental e muitos dos prazeres da vida e da alma: tudo isso tem a ver com os prefeitos – e, claro, os vereadores.
Como saber que alguém não presta para prefeito? Receita simples e segura: os assuntos que prioriza na campanha. Se priorizar religião, corrupção ou futebol, podem ter certeza de que será mau prefeito. Nada tenho contra esses temas, apenas observo que, ao dar-lhes prioridade, ele estará fugindo dos assuntos que pode e deve abordar. Não é que não possa ter opinião a respeito. Mas pode fazer pouco de bom sobre religião, futebol e, mesmo, corrupção. (É verdade que pode atacar a corrupção na prefeitura. Mas sua opinião sobre a corrupção fora do município, seja o caso Cachoeira, seja o mensalão, não tem muita importância).
Não estou defendendo políticos de nenhum partido em especial. Um dos maiores prefeitos do Brasil foi Jaime Lerner, que revolucionou Curitiba, transformando a cidade que era alvo das zombarias do jornal “O Pasquim” em exemplo de urbanismo para o Brasil e, não sejamos tímidos, o mundo. Ele, mais um técnico do que um político, pertenceu a partidos de direita, como a Arena e o PFL. Em compensação, uma das cidades que mais melhorou no Brasil foi Porto Alegre – graças a uma sucessão de bons prefeitos do PT. Temos exemplos de bons administradores municipais dos dois lados.
Os assuntos que um candidato decente deve discutir
O que estou defendendo é, simplesmente, que os candidatos digam o que pretendem para suas cidades. Se não disserem nada, é porque não farão nada que preste. Ou não têm ideias para o cargo, ou o querem para algum fim espúrio.
Então, qual uma pequena lista de assuntos municipais decisivos?
Primeiro, a educação. O ensino fundamental é assunto das cidades – e Estados. Uma prefeitura pode investir muito nisso. Pode e deve controlar a qualidade da educação, porque está perto da escola. Pode comparar os resultados de cada uma delas nos exames e, especialmente, na entrada e na saída: pode cotejar o conhecimento do aluno que ingressa no primeiro ano e do que está se formando. Ele melhorou, piorou, e quanto? Provavelmente, uma de classe média formará alunos melhores, no conjunto, mas ela já os recebeu mais qualificados. Se virmos o que cada escola acrescentou, ou agregou, ao seu aluno em termos de qualidade, aí sim teremos uma métrica justa. Promoveremos assim a melhora da educação. Também há que levar em conta os recursos investidos: uma escola com menor orçamento, que consiga bons resultados, tem mérito maior do que outra que teve iguais resultados, mas com mais dinheiro.
Para escolas, existem manuais de boas práticas. Há gente de tudo o que é lado político empenhada nisso. E, se por acaso o município for desses que tem arrecadação enorme, pode levar a escola ao infinito. Em educação, sempre se pode melhorar.
Segundo, a saúde. Ela tem uma vantagem sobre a educação: quem está doente sabe que não está bem de saúde. Já quem é ignorante ignora a própria ignorância. Por isso, nosso povo reivindica mais em termos de saúde que de educação. Ora, a boa saúde é um bem enorme. Reduz gastos sociais. Cada real bem investido nela (ou na educação) leva a economias e mesmo ganhos mais adiante. Por isso muitos afirmam que não se trata exatamente de gasto, mas de investimento. Isso, para não falar no ganho qualitativo, que nem se pode medir, do bem-estar das pessoas.
Terceiro, o saneamento. Vão longe os tempos em que um governador de São Paulo, Paulo Egydio Martins, lamentava que canos não dão votos, porque estão debaixo da terra e ninguém os vê – ao contrário, por exemplo, do asfalto ou do poste, que seriam mais populares. Hoje, ao contrário, as pessoas sabem que água e esgoto trazem saúde. Salvam vidas, sobretudo de recém-nascidos. O que o seu candidato propõe a respeito? Quantos domicílios em sua cidade não têm água tratada, ou esgoto? Ele sabe quantos? Tem propostas a respeito?
Quarto, o trânsito. O trânsito é o problema. O transporte público é a solução. Em várias cidades do Brasil, fazem-se mais viagens por dia de carro do que de ônibus. Isso é absurdo. Andar só de carro é insustentável, do ponto de vista econômico e ecológico. Infelizmente, o Brasil aposta na indústria automobilística para crescer. Será preciso mudar isso. Mas a mudança começa pelo município. Precisamos ter uma rede boa de transporte público para, depois, adotar o pedágio urbano, restringir vias ao tráfego privado, premiar em termos de tempo e tarifa quem usa ônibus, metrô ou bondes (que deveriam voltar, como voltaram à Europa em grande estilo). Isso finalmente exigirá, ou melhor, permitirá que mudemos nossa matriz de produção, comércio e imaginação, em que o carro particular tem há décadas um peso tão significativo.
Este é um rol pequeno de temas, mas todos eles essenciais. Se conseguirmos focar a discussão neles, poderemos ter melhores prefeitos – e vereadores. O ganho social dessa melhora será enorme.
Receita para um mau prefeito
Artigo Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo
Quase não vejo discussão sobre as eleições deste ano. Fala-se, sim, em coligações, mesmo as mais absurdas, e no tempo de televisão que gerarão para os candidatos – mas do que importa, que é o mérito dos nomes propostos, quase nada. Permito-me assim dar uma sugestão para o eleitor decidir, não em quem vai votar, mas em quem não votar. Pelo menos, deste modo ele pode descartar nomes que não merecem cargo tão destacado. Considero prefeito o cargo mais importante do Brasil, depois de presidente da República. Embora os governadores estejam hierarquicamente acima dos prefeitos, é o município que lida com quase tudo de nossa vida cotidiana. Trânsito, saúde, educação, árvores, calor e frio, até o bem-estar físico e mental e muitos dos prazeres da vida e da alma: tudo isso tem a ver com os prefeitos – e, claro, os vereadores.
Como saber que alguém não presta para prefeito? Receita simples e segura: os assuntos que prioriza na campanha. Se priorizar religião, corrupção ou futebol, podem ter certeza de que será mau prefeito. Nada tenho contra esses temas, apenas observo que, ao dar-lhes prioridade, ele estará fugindo dos assuntos que pode e deve abordar. Não é que não possa ter opinião a respeito. Mas pode fazer pouco de bom sobre religião, futebol e, mesmo, corrupção. (É verdade que pode atacar a corrupção na prefeitura. Mas sua opinião sobre a corrupção fora do município, seja o caso Cachoeira, seja o mensalão, não tem muita importância).
Não estou defendendo políticos de nenhum partido em especial. Um dos maiores prefeitos do Brasil foi Jaime Lerner, que revolucionou Curitiba, transformando a cidade que era alvo das zombarias do jornal “O Pasquim” em exemplo de urbanismo para o Brasil e, não sejamos tímidos, o mundo. Ele, mais um técnico do que um político, pertenceu a partidos de direita, como a Arena e o PFL. Em compensação, uma das cidades que mais melhorou no Brasil foi Porto Alegre – graças a uma sucessão de bons prefeitos do PT. Temos exemplos de bons administradores municipais dos dois lados.
Os assuntos que um candidato decente deve discutir
O que estou defendendo é, simplesmente, que os candidatos digam o que pretendem para suas cidades. Se não disserem nada, é porque não farão nada que preste. Ou não têm ideias para o cargo, ou o querem para algum fim espúrio.
Então, qual uma pequena lista de assuntos municipais decisivos?
Primeiro, a educação. O ensino fundamental é assunto das cidades – e Estados. Uma prefeitura pode investir muito nisso. Pode e deve controlar a qualidade da educação, porque está perto da escola. Pode comparar os resultados de cada uma delas nos exames e, especialmente, na entrada e na saída: pode cotejar o conhecimento do aluno que ingressa no primeiro ano e do que está se formando. Ele melhorou, piorou, e quanto? Provavelmente, uma de classe média formará alunos melhores, no conjunto, mas ela já os recebeu mais qualificados. Se virmos o que cada escola acrescentou, ou agregou, ao seu aluno em termos de qualidade, aí sim teremos uma métrica justa. Promoveremos assim a melhora da educação. Também há que levar em conta os recursos investidos: uma escola com menor orçamento, que consiga bons resultados, tem mérito maior do que outra que teve iguais resultados, mas com mais dinheiro.
Para escolas, existem manuais de boas práticas. Há gente de tudo o que é lado político empenhada nisso. E, se por acaso o município for desses que tem arrecadação enorme, pode levar a escola ao infinito. Em educação, sempre se pode melhorar.
Segundo, a saúde. Ela tem uma vantagem sobre a educação: quem está doente sabe que não está bem de saúde. Já quem é ignorante ignora a própria ignorância. Por isso, nosso povo reivindica mais em termos de saúde que de educação. Ora, a boa saúde é um bem enorme. Reduz gastos sociais. Cada real bem investido nela (ou na educação) leva a economias e mesmo ganhos mais adiante. Por isso muitos afirmam que não se trata exatamente de gasto, mas de investimento. Isso, para não falar no ganho qualitativo, que nem se pode medir, do bem-estar das pessoas.
Terceiro, o saneamento. Vão longe os tempos em que um governador de São Paulo, Paulo Egydio Martins, lamentava que canos não dão votos, porque estão debaixo da terra e ninguém os vê – ao contrário, por exemplo, do asfalto ou do poste, que seriam mais populares. Hoje, ao contrário, as pessoas sabem que água e esgoto trazem saúde. Salvam vidas, sobretudo de recém-nascidos. O que o seu candidato propõe a respeito? Quantos domicílios em sua cidade não têm água tratada, ou esgoto? Ele sabe quantos? Tem propostas a respeito?
Quarto, o trânsito. O trânsito é o problema. O transporte público é a solução. Em várias cidades do Brasil, fazem-se mais viagens por dia de carro do que de ônibus. Isso é absurdo. Andar só de carro é insustentável, do ponto de vista econômico e ecológico. Infelizmente, o Brasil aposta na indústria automobilística para crescer. Será preciso mudar isso. Mas a mudança começa pelo município. Precisamos ter uma rede boa de transporte público para, depois, adotar o pedágio urbano, restringir vias ao tráfego privado, premiar em termos de tempo e tarifa quem usa ônibus, metrô ou bondes (que deveriam voltar, como voltaram à Europa em grande estilo). Isso finalmente exigirá, ou melhor, permitirá que mudemos nossa matriz de produção, comércio e imaginação, em que o carro particular tem há décadas um peso tão significativo.
Este é um rol pequeno de temas, mas todos eles essenciais. Se conseguirmos focar a discussão neles, poderemos ter melhores prefeitos – e vereadores. O ganho social dessa melhora será enorme.
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